História/
Depoimento da sobrevivente do Holocausto Cecília Gewertz
Polônia
1922 - 1945
Suécia
1945 - 1952
Brasil
1952 - 2018
Depoimento da sobrevivente do holocausto cecília gewertz
parte 1 – INFÂNCIA E A GUERRA
A vida na Polônia
Quando ela era pequena, os três já estavam casados, tinham filhos e moravam em suas próprias casas. Somente Cyrla e Szaja moravam com os pais.
A foto acima é a única que sobrou de Cyrla antes da Guerra, na Polônia (seu irmão a encontrou jogada na rua após o fim da guerra). No retrato ela tinha 15 anos (foto de 1937).
Ela contava várias histórias de como brincava e tinha uma vida normal. Até 1940.
A seguir ela descreverá, com suas palavras, tudo o que passou.
Veja a história e o depoimento da sobrevivente do Holocausto Cecília Gewertz:
Gueto e esconderijo em Sandomierz
Estourou a guerra em Pessach (a Páscoa Judaica), quando a gente estava fazendo o Sêder (cerimônia de comemoração de Pessach).
Chegaram os alemães e desmontaram a casa, nos tiraram de lá, e nos levaram para o gueto.
Escolheram os velhos para trabalhar. Minha mãe falou: nós vamos nos esconder em um sótão.
Durante dois meses olhamos pela janela e vimos que estavam matando judeus. Então a zeladora do local onde nós estávamos nos delatou.
Veio um cachorro e raspou a portinha (eu lembro como hoje, o cachorro raspou) e nós todos saímos, fomos levados para a prisão e separaram os velhos dos jovens.
Eu chorava, porque queria ir junto com minha mãe. Aí ela falou: “fica aqui que nós vamos nos encontrar depois da guerra”. Mas infelizmente isso não aconteceu. Eu fiquei sozinha no gueto.
O que que eu fazia? Levava os mortos.
Então eu fui falar com a mulher que me escondia: “Dona Shvirtzona, eu não vou ficar aqui, eu tenho medo”.
Ela me levou para o curral dela, onde as vacas, o gado e os outros animais ficavam... sem luz, sem água, sem comida.
Ela chegava de charrete todo dia de manhã e trazia comida (leite, pão,...).
Ele disse: “eu venho aqui te ver todo dia”, mas não deu.
Vala comum
E todo mundo caiu em cima de mim, todo mundo. Era cinco horas da tarde. Quando eu vi que estava todo mundo morto, eles falaram assim em alemão: “Amanhã a gente vem e joga no vale".
Mas todo mundo caiu em cima de mim. Mataram 107 pessoas e todo mundo caiu em mim.
Fiquei a noite toda no rio, escondida em um canal de eletricidade, tinha medo que alguém pudesse me encontrar e me matar.
Eu encontrei uns colonos em uma feira e pedi, quase chorando, um pedaço de pão. “De onde você veio menina?” - perguntaram as pessoas. Eu falava bem polonês, mas não podia falar que eu era judia.
“Nós estamos indo à feira, você não tem dinheiro para comprar comida?”. Respondi que não. “Cadê seus pais?”, respondi que morreram (era isso que eu inventava).
Gueto de Radom
Praça central do gueto de Radom (1939/1940). Fonte: Unitaded States Holocaust Memorial Museum (USHMM).
Tinha um alemão, Bartac e Muller, dois alemães. Apanhamos. Eu não conseguia fazer a norma, aquele negócio para fazer a arma, que era de aço e precisa lixar. Eu não consegui fazer isso.
Chorava...aí de manhã eu apanhava, cheio de coisa.
Lá uma moça fugiu, encontraram ela, penduraram ela no pescoço.
Auschwitz
Meu tio, irmão do meu pai, me encontrou lá e tinha um menino, chamava-se Benjamin, ele morreu, deixou ele na beirada da estrada e foi adiante.
Cortaram meu cabelo pela metade. “Tá bonita assim?”. Cortaram a outra metade.
Tiraram tudo a roupa, botaram aquele uniforme... vestido azul e branco, sem sutiã, sem calça, assim, grande, sujo. Quando me lembro não quero nem viver.
E nós fomos todo dia trabalhar. Nós fomos no barracão, eram 40 moças dentro do barracão.
Entrada do campo de Auschwitz.
Fonte: United States Holocaust Memorial Museum, courtesy of Instytut Pamieci Narodowej
Aí nós tínhamos tamanco, e neve entrou no tamanco, não dava para andar. Tirávamos com colher a neve, e precisa ir de novo. Prisioneiros.
Aí eu não respondi nada. Em alemão, mas eu entendi o que ele mais ou menos queria porque parece um pouco [com polonês]... eu tinha medo de falar. “Fala”, ele fala. Falei: não sei.
Quem tirou ela? Outra menina. Falei eu não vou mexer nada essas coisas. Eu não sei. Eu chorava dia inteiro.
Trabalhava, de pedras, todo dia em Auschwitz. Carregava tijolos. E música tocava e a gente ía. A menina deixou cair 2 pedras, mataram ela.
De um lado para o outro. Você levou e à noite devolveu. Só pra ocupar a gente.
Aconteceu um dia, tinha um menino que era da minha cidade chegou e falou: “Cesia, eu to te trazendo um pedaço de pão e sal.
Hoje nós vamos arrebentar esse forno, em cima. Eu vou morrer, se você sobreviver, você pode falar que eu morri desse jeito pra salvar mundo”.
Estourou o forno. Era uma casinha, quem chegou, velhos, crianças, botaram no forno. Aí, em 10 minutos acabou. Jogaram Zyklon B dentro pra você morrer mais rápido.
Essas coisas, a gente não pode esquecer.
Falei ele sabe que... ele me conhece e ele viu que eu tava aqui.
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Mengele
Ele me levou a uma sala no “hospital”, onde estavam cinco banheiras com água quente, acima de 30º C.
Junto comigo estavam uma menina grega, bem pequenininha e magrinha, uma francesa e uma húngara. Nenhuma de nós se conhecia.
Eu não tinha cabelo, nem roupa. Logo que entrei, gritei: ‘’Ai, está quente!’’. Ele disse: “Se você não mergulhar a cabeça eu te mato!”.
Então, entrei por inteiro debaixo d’água. Depois de 15 minutos, ele me mandou sair e entrar em outra banheira, agora com água gelada.
Isso ele fez com todas, porém a grega não aguentou. Assim que ela saiu da banheira quente, os alemães levaram ela de maca.
Ele ficou com relógio na mão, olhando hora. Luva preta ele estava, olha lembro como agora. Chapéu... Manfred, aquele chapéu.
Eram 5 horas e elas estavam livres. Eu contei o que o Mengele tinha feito e então elas arrancaram duas tábuas e me colocaram na cama de cima do beliche.
Eu estava inchada, colocava a mão na minha perna e sentia um buraco. Por dois dias eu fiquei sem me mexer.
Aí as meninas disseram: “Vamos descer, senão Mengele vem te procurar e você vai morrer”. Eu perguntei: “como que eu posso descer?”
Ele não me reconheceu, pois estavam todas juntas, embananadas.
Uma tática que a gente utilizava era passar beterraba no rosto, para parecer que estávamos coradas, saudáveis.
Birkenau, Ravensbruck e Bunawerk
E me mandaram pra Ravensbruck, Birkenau, Bunawerk, carregando carrinho de pedras, eu empurrava nas linhas, no trenzinho.
Eu falei: “eu não vou aguentar isso aqui”, falei pras meninas. “Fica firme”, elas falaram.
Mulheres empurrando carrinho no campo de Ravensbruck, na Alemanha.
Fonte: Yad Vashem The Holocaust Martyr’s and Heroe’s Remembrance Authority.
Botavam pedras. Lá já era no carrinho de pedras, e empurrava carrinho.
Dia seguinte voltou isso aqui pra cá. Só pra gente cansar.
Malchow
Disposição do campo de concentração de Malchow.
Fonte: alvin-portal.org.
Nós íamos no muro, pra cima, era uma neve, frio, à noite, sem comer, não deram nada... nada.
A gente ía de colher na mão porque colher era pra se tem comida, deram com colher.
Aí caiu um caminhão com repolho. Todo mundo correu e roubou o repolho. Um pôs aqui, outro pôs aqui, outro pôs aqui...quando chegamos na portaria, ele disse: “abre pernas e abre mãos”.
Todo repolho caiu. Não tinha mais repolho, comida. Todo mundo estava contente que vamos comer repolho.
Você vê que vida?
Chegou 5 ônibus de Cruz Vermelha, mandaram por lenço branco, entrou 40 pessoas em um ônibus branco com cruz vermelha.
“Nós vamos fugir”. Escondidos nós fomos. Era Cruz Vermelha da Suécia, sueco. Era Folke Bernadotte, chamava-se [o comandante].
A gente não entendia nada, mas ele mandou entrar no ônibus. Quinto ônibus foi bombardeado pelos alemães, 40 meninas morreram*. E eu tava no quarto ônibus. Nós vimos.
*O quinto ônibus foi bombardeado pela força aérea inglesa que confundiu o comboio dos sobreviventes com um comboio de tropas nazistas.
Milagrosamente algumas mulheres sobreviveram ao ataque, segundo relatos de familiares de uma sobrevivente que estava nesse ônibus.
Depoimento da sobrevivente do holocausto cecília gewertz
parte 2 – recomeço e casamento
A vida na Suécia
Assim que chegamos na fronteira com a Suécia, todo mundo atacou uma mesa com sanduíches.
Os médicos gritaram: “Não pode comer! Vocês estão com os intestinos presos! Vocês estão magras! Não pode!”.
Eles disseram que ficaríamos em regime, em quarentena.
Então as meninas colocaram os sanduíches em sacolas, pois tinham o hábito de guardar a comida, porque não sabiam quando comeriam de novo.
Porém, os médicos jogaram tudo no mar. Eu era tímida, tinha vergonha de comer, sempre ficava afastada, triste.
Logo, começaram a anunciar que os parentes procuravam pelos sobreviventes. Vários encontraram irmãos, primos, filhos. Ninguém me chamou.
Eu estava em um cantinho, chorando. Eu estava sozinha no mundo, de novo.
Comecei a pensar que meu irmão Chaim havia morrido. Pensei que minha vida estava acabada.
Retrato da Cecília na Suécia.
Um professor, chamado Hugo Valentin, encontrou-me e me chamou para ir a sua casa.
Várias pessoas nos trouxeram roupas. Eu coloquei um vestido bege e fui para casa dele.
Eu disse a ele: ‘’não sei levar louça, não sei limpar a casa, não sei cozinhar, eu nunca fiz nada’’.
Mas ele disse: “Não tem problema, você vai ficar com a gente’’.
Enquanto ele brincava com as filhas, eu ficava na cozinha.
Certo dia, esse professor perguntou quem era um tal de Chaim Rybitwer. Eu disse: ‘’é meu irmão, por quê?’’.
“Porque ele está em Bytom (Polônia), vivo, procurando você”. Eu não vi ele, mas ele me ligou, no hospital – onde Cyrla trabalhava -, e disse que estava em Frankfurt, na Alemanha, que tinha encontrado um retrato meu na rua (os poloneses tinham jogado várias fotos nas ruas) e falou para eu ir encontrar ele.
Ele já estava casado com outra mulher e tinha uma filha. Isso foi em 1945.
Apesar do pedido do meu irmão, eu não fui”.
Um dia, eu disse a ele [professor Hugo] que queria estudar e pedi que me arrumasse alguma coisa, pois eu não ficaria lá.
Ele pediu ajuda para uma assistente social e ela me colocou em uma escola de enfermagem.
Assim, eu fui para outra cidade para estudar e fiquei lá por 2 anos.
Depois, eu trabalhei em um hospital na Suécia.
Continuei na Suécia, agora morando com uma menina, uma amiga. Lá eu comecei a estudar inglês.
Algum tempo depois encontrei Simon (meu futuro marido) e não o larguei mais.
Durante 5 anos não quis casar com ele, pois nós dois éramos pobres.
Continuei na Suécia por 7 anos e depois viemos para o Brasil porque o Simon tinha família e ele queria ver a família.
Eu falei deixa, estou trabalhando, estava na IBM, ganhando bem, já tinha meu apartamento.
Se você não vai, eu não vou (disse Simon).
Eu trabalhava como secretária na IBM. O Simon ganhava bem, compramos um apartamento pequeno, um quarto e sala, só.
Ele trabalhava numa fábrica de munição, mas até agora não sei o que ele fazia.
Ele me obrigou (a ir para o Brasil), falou você está sozinha aqui, não tem ninguém, seu irmão está nos EUA.
Então, em 1952, Cecília e Simon embarcaram de navio para o Brasil.
Depoimento da sobrevivente do holocausto cecília gewertz
parte 3 – mais um recomeço, filhos e netos
A vida no Brasil
Eu queria ter um filho. Cheguei aqui, não conhecia ninguém, não sabia falar.
"Por que você me trouxe aqui?", comecei a brigar com Simon.
Cecília no Brasil, 2003.
Depois trabalhei vendendo joias. E o Simon tinha representação de vinho, sardinha... coisas estrangeiras.
Não dava pra ficar rico, mas dava pra viver.
Eu queria comprar mais um apartamento, mas ele não deixava, brigava comigo, falava que não tinha dinheiro.
Mas eu sempre tive dinheiro, não posso ficar sem dinheiro. Eu lutei com os alemães, brigava para ter indenização. E isso me ajuda um pouco.
Mengele no Brasil
Ao visitar o sítio de uma amiga em Serra Negra, pequena cidade no interior de São Paulo, ela ficou sabendo que o homem que a oprimira fria e cruelmente em Auschwitz estava lá também.
Mengele estava na mesma cidade que ela, mais de 30 anos depois e milhares de quilômetros de distância do local onde eles se “encontraram” pela última vez.
Se ele a visse, provavelmente não se lembraria dela, afinal ela estava bem diferente, agora tinha cabelos e estava muito mais saudável, mas, mesmo assim, ela ficou aterrorizada e quis ir embora de lá imediatamente.
E eu contava pra Anésia histórias da minha vida. Ela não imaginava isso aqui.
E vem todo dia um menino loirinho com uma bicicleta diferente. Aí a Anésia perguntou “da onde você tem essa bicicleta tão bonita?”.
Ele nunca mais apareceu. Ele estava na fronteira, fora e eu tava dentro, mas eu não vi ele.
“Mengele”, falaram. “Sabe que homem é esse aí? É Mengele”.
Falei: “quem é Mengele?” Aí comecei a ter medo. Nunca mais... parei de ir pro sítio.
Cyrla, Simon e José (filho deles) no sítio de sua amiga em Serra Negra (década de 1960/70).
Ele tava escondido. Se ele me vê? Acho que não me reconhece. Eu estava magra, abandonada, feia, sem cabelo.
Não sei, mas se ele soubesse que eu sou judia, ele ia me matar.
Soube que ele está lá, eu já não fui mais lá. Eu falei Anésia, não vou mais lá.
E ela contou pra todo mundo que eu sou judia e que eu conheço o Mengele de lá.
Então, os colonos lá, você sabe, começam a falar e começam perguntar, falei sabe de uma coisa, até falei pro Zé, não vou mais pro sítio, não vou mais.
Sabe-se que Mengele tinha um interesse especial por gêmeos, o que o levou a fazer vários experimentos com essas pessoas.
Coincidência ou não, os primeiros netos da Cecília foram trigêmeos.
Família
Proporcionaram que ele fosse à escola e cursasse uma faculdade.
Nesse mesmo ano, José se casou com Sandra. Eles tiveram 4 filhos: Leonardo, Rodrigo e Marcelo (trigêmeos), em 1995, e Eduardo, oito anos depois, em 2003.
Foto da família quase completa (incluindo a parte da sua nora) no Bar-Mitzvá do seu neto mais novo Eduardo, em 2016.
Falecimento
Ela deixou 1 filho, 1 nora, 4 netos e um exemplo que nunca será esquecido.
Seu depoimento é emocionante e uma oportunidade única de ouvir da boca de quem esteve nos campos de concentração e guetos o que de fato ocorreu lá.
Afinal, não é sempre que se pode ouvir o depoimento de um sobrevivente do Holocausto e sua história contada por ele mesmo.
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Legado
Além do filho, da nora, dos netos, e dos amigos, Cecília deixou um exemplo e ensinamentos que viverão para sempre.
Infelizmente ela não pode mais contar sua história.
Cabe a nós agora contar o que ela e milhões de judeus passaram, simplesmente pelo fato de serem judeus, para honrar suas memórias e garantir que essas histórias não serão esquecidas.
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